Crianças e adolescentes homens vítimas de violência doméstica são esquecidos pela lei?
- José Caubi Diniz Junior
- 27 de mar. de 2019
- 5 min de leitura
O legislador brasileiro, ao editar a chamada “Lei Maria da Penha” (L. 11.340/06), com a finalidade de combater a violência doméstica e familiar contra a mulher, trouxe inúmeros mecanismos de proteção e assistência à mulher, ao reconhecer que a mulher é eminentemente vulnerável no âmbito das relações íntimas de afeto, no âmbito da unidade doméstica e no âmbito da família, quando se trata de uma situação de violência.
Diante da necessária proteção especial à mulher e a reprovabilidade da conduta do agressor que abusa da vulnerabilidade da vítima, o legislador também optou por afastar dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher a incidência da Lei 9.099/95, que prevê, por questões político-criminais, uma série de medidas despenalizadoras. O legislador assim atuou especialmente a fim de garantir que não haja transação penal, composição civil dos danos ou suspensão condicional do processo, garantindo que o processo se inicie, tenha seu curso até o fim e, sendo procedente as alegações, seja o infrator condenado.
É interessante notar que inicialmente o projeto de lei (PL 4559/20041), apesar de proibir a aplicação de penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta básica e multa, não impedia a possibilidade da transação penal, apenas criava especificidades a serem observadas.
Com efeito, o art. 35 do PL dispunha que a oferta da transação penal não seria feita na primeira audiência, mas em uma segunda audiência, com o objetivo de disponibilizar ao juiz outras ferramentas mais adequadas e eficazes para solucionar a questão, como o atendimento das partes por uma equipe multidisciplinar e realizar exames periciais. Outrossim, o Ministério Público deveria considerar os subsídios apresentados pela equipe de atendimento multidisciplinar para a elaboração da proposta de transação penal.
Além dos requisitos já dispostos na Lei 9.099/95 para a possibilidade da transação penal, o PL 4559/2004 acrescentava que não seria admitida a proposta se restar comprovado o descumprimento, pelo acusado, das medidas cautelares que lhe tenham sido aplicadas.
Após debates, a Comissão de Seguridade Social e Família, então presidida pela deputada Jandira Feghali, consignou que “ao analisarmos dez anos de atuação dos Juizados Especiais vemos que os resultados reforçam a impunidade, permitindo reincidência e agravamento do ato violento – 90% dos casos são arquivados ou levados a transação penal2”.
Outrossim, é importante notar que, além de evitar a impunidade, outros argumentos para a não incidência da Lei 9.099/95 diante da gravidade da conduta, que não poderia ser considerada como “menor potencial ofensivo” mas uma verdadeira violação a direitos humanos, foram apresentados no sentido das repercussões da violência doméstica contra a mulher sobre os filhos:
[…] Agredir fisicamente a esposa ou companheira deveria ser um fator agravante; a presunção de confiança no marido ou companheiro, por parte da vitima, também um agravante, e cometer o ato na presença de filhos menores, pior ainda. Nada disso é levado em consideração, e a lei 9099/95 trata o caso nos mesmos moldes de uma briga de esquina (p. 12).
[…]
A violência domestica e familiar contra a mulher tem repercussões diretas sobre estas, sobre seus filhos, sobre sua família. Leva a desestruturação da mulher, muitas vezes à sua incapacidade e morte (p. 13).
Assim, a Comissão apresentou substitutivo que, dentre outras modificações, retirou a possibilidade de incidência da Lei 9.099/95, sob a alegada necessidade de evitar a impunidade, passando o PL a dispor que “nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/953”. Tal redação foi aprovada e vigora no art. 41 da Lei 11.340/06.
Ocorre que mesmo reconhecendo a gravidade da violência doméstica e familiar contra aqueles que são vulneráveis nestas relações ou ambientes, o legislador apenas se prontificou a proteger aquelas pessoas do gênero feminino.
Ora, a vulnerabilidade de uma criança e, até certo ponto, de um adolescente (a depender da idade), independe de gênero. O ordenamento legal brasileiro criou uma situação de desigualdade de gênero no âmbito da proteção da vulnerabilidade, permitindo que casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes do gênero masculino terminem impunes, em razão de tais casos serem submetidos ao JEcrim.
Apesar de não tratar do problema aqui levantado, Renato Brasileiro4, ao dispor sobre o sujeito passivo do âmbito de proteção da Lei Maria da Penha, apresenta um exemplo que descreve esta desigualdade:
Na hipótese de uma mesma agressão ser perpetrada contra vítimas de sexos distintos (v.g., pai que agride simultaneamente um filho e uma filha), estará sujeita à Lei Maria da Penha apenas a violência perpetrada contra a criança do sexo feminino. […] Nesse caso, os institutos despenalizadores da Lei dos Juizados (v.g., transação penal, suspensão condicional do processo) só poderão ser aplicados em relação à infração de menor potencial ofensivo cometida contra o filho, vez que não se admite a aplicação da Lei n. 9.099/95 aos crimes e contravenções praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340/06, art. 41).
Ora, ainda que os processos corram juntos, em razão das regras de competência por conexão probatória, perante o juízo de violência doméstica e familiar contra a mulher, os institutos despenalizadores devem ser observados em relação ao crime cometido contra a criança do gênero masculino (cf. art. 60, parágrafo único, da Lei 9.099/95).
Em que pese a necessária proteção especial à mulher, em razão de sua comprovada e inquestionável vulnerabilidade no âmbito doméstico e nas relações íntimas ou familiares, todos os argumentos que levaram à inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes no contexto da Lei Maria da Penha são aplicáveis aos casos de violência quando a vítima é uma criança ou adolescente do gênero masculino.
Aqui não criticamos a Lei Maria da Penha, apenas queremos demonstrar o fundamento utilizado para a elaboração do art. 41 e que esta mesma proteção deve alcançar outros atores das relações domésticas e familiares, ou até mesmo fora destes ambientes, em razão da vulnerabilidade intrínseca às suas condições (no caso, a idade).
A distorção apresentada no exemplo acima não pode ser mantida exclusivamente porque uma criança é do gênero feminino e a outra do masculino, devendo o infrator responder ao processo pelo crime cometido contra a filha, mas pagar uma cesta básica em relação ao crime contra o filho, por conta de uma transação penal, e sequer responder a um processo quanto à violência doméstica contra este – contra quem abusou da vulnerabilidade.
Entendemos que todo crime contra criança ou adolescente é um abuso da condição de vulnerabilidade destes, especialmente no âmbito das relações domésticas e familiares onde a situação de opressão e controle é maior e a prova torna-se difícil. Poucos devem discordar desta assertiva.
Se a previsão constitucional do art. 226, §8º, que determina que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, permite que nos crimes de violência doméstica contra a mulher seja afastada a Lei nº 9.099/95, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal5, inexiste qualquer inconstitucionalidade em um dispositivo que assegure o mesmo nos crimes praticados neste contexto contra crianças e adolescentes independentemente de gênero.
Aqui, nossa sugestão, portanto é que um artigo seja acrescentado ao Estatuto da Criança e do Adolescente, dispondo que:
Aos crimes praticados contra crianças e adolescentes, no âmbito doméstico ou das relações familiares, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Que algum parlamentar nos ouça.
Autor: MARCELO SANTIAGO DE MORAIS AFONSO
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/criancas-e-adolescentes-homens-vitimas-de-violencia-domestica-sao-esquecidos-pela-lei-20032019
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